sexta-feira, 28 de julho de 2017

Patrimônio documental brasileiro em risco


Especialistas debatem 'Lei da Queima de Arquivo' em tempos de exceção


Escrito por: Gabriel Valery
Fonte: Portal Vermelho

'Claramente, esse é um projeto com a intenção da manutenção do poder das pessoas que assumiram suas posições através de um golpe em 2016', define o especialista em informação digital Charlley Luz.
“Claramente, esse é um projeto com a intenção da manutenção do poder das pessoas que assumiram suas posições através de um golpe em 2016. Esse é um projeto que autoriza eles a manipularem a informação e documentos”, afirma o especialista em informação digital Charlley Luz sobre o Projeto de Lei (PL) 7.920, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), conhecido por especialistas em arquivologia como PL da Queima de Arquivo.

Na prática, o projeto permite a destruição (inclusive por incineração) do patrimônio documental brasileiro após sua digitalização, e é alvo de abaixo-assinado contra sua aprovação. Mesmo o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) critica a medida por “extinguir a função genuína de prova ou testemunho de grande parte dos documentos arquivísticos”.

O tema foi alvo de debate realizado na noite de ontem (25) na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) e contou com a participação, além de Charlley, da historiadora e socióloga Simone Fernandes e da especialista em documentação Rachel Bueno.

O debate trouxe questões técnicas sobre a crítica ao projeto, além de contextualizar com a conjuntura política atual; por isso, foi intitulado de “PL 7920: Queima de Arquivo em Temos de República Instável”. A história do PL data de 2007, quando Malta já era senador e propôs o Projeto de Lei do Senado (PLS) 146. “Na época, ele ganhou o nome de queima de arquivo exatamente porque prevê a eliminação dos documentos por essa via. Essa palavra foi a mais temerosa por conta do impacto, tanto no setor público quando no setor privado”, disse Charlley que ironizou as possibilidades maléficas da eliminação de provas: “Joesley Batista curtiu isso”.

“O projeto já tinha sido colocado em escanteio na época em que foi apresentado, mas parece que o senador tem um apego muito grande a essa ideia estapafúrdia. Ele não tinha ido adiante, porque já existia outro projeto tramitando na Câmara que tratava de assuntos relativos à digitalização. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 11 foi votado em 2011 e virou a Lei 12.682. Essa lei aborda a questão da digitalização”, explica o especialista.

Esse projeto também previa, à sua forma, a destruição de documentos após o processo de digitalização, entretanto, a então presidenta Dilma Rousseff (PT) executou uma série de vetos, impedindo a regulamentação alvo de críticas. “Na hora que o projeto foi para sanção presidencial, teve um veto justamente no artigo que possibilitava a eliminação do documento original. Teve toda uma articulação de especialistas via Ministério da Justiça para a obtenção do veto. Na argumentação, a presidência disse que a eliminação de documentos físicos resultaria em insegurança jurídica”, continua Charlley.

O especialista explica que essa insegurança é criada por conta de que “se você tem uma cópia de um documento, será impossível recorrer ao original para esclarecer eventuais dúvidas. Hoje, por conta do ordenamento jurídico, é possível, nos processos judiciais, os documentos serem anexados digitalizados e autenticados. Mas, caso alguma das partes recorra, arguindo que o documento tem problemas e que não representam a verdade, o juiz pede o original. Então, temos a agilidade de aceitação de arquivos digitais, mas preservada a segurança jurídica através dessa possibilidade”.

Projeto retomado

“Em 2015, no auge das movimentações do impeachment, o senador Malta tentou movimentar novamente seu projeto, mas a Comissão de Ciência e Tecnologia barrou, ao afirmar que já havia legislação sobre o tema. Já em 2016, entramos em uma situação de República instável. Então, começaram negociações entre políticos que desarquivaram o projeto que acabou indo direto para a Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Então, o relator, senador José Maranhão (PMDB-PB), deu seu parecer favorável, desconsiderando todo o histórico de discussão sobre o tema e os vetos presidenciais”, disse Charlley sobre os vetos de Dilma em matéria correlata.

O especialista conclui que “isso é algo que nunca foi visto em nenhum país do mundo. Já me perguntaram se temos exemplos de países que fazem isso. Eu respondi que não. Geralmente os países, diferentemente do Brasil, valorizam seu patrimônio documental. Parece que temos medo disso. Sabemos que existe o grande interesse por trás da extinção da função genuína das provas”.

Em dezembro de 2016, Malta, articulando com a base do presidente Michel Temer (PMDB), tentou colocar o projeto em votação, sem sucesso. Entretanto, no último 14 de junho, finalmente o senador conseguiu emplacar seu PL da queima de arquivo no plenário da Casa. A votação aconteceu em meio a denúncias e escândalos envolvendo o governo do peemedebista e seus aliados no caso das delações do dono da JBS Joesley Batista, bem como o pedido de prisão do senador Aécio Neves (PSDB-MG). Agora, o projeto tramita na Câmara dos Deputados para votação e posterior encaminhamento para sanção presidencial.

Questionada sobre a falta de mobilização e divulgação do tema, a historiadora Simone observa o contexto de reformas propostas pela agenda de Temer, aliado aos momentos de tramitação do PL que foram sufocados por escândalos. “Nossa sociedade está tão carente em relação a outras questões. Veja, paralelamente temos uma reforma trabalhista. Então, não há comoção nacional na discussão do arquivo. Como ela não trata de questões do indivíduo diretamente, parece que não causa impacto”, afirma.

Para a historiadora, o projeto segue uma lógica de desmonte do Estado. “Retomando teóricos que pensam o arquivo, há uma crítica aos documentos eletrônicos, especialmente em relação à desmaterialização do edifício público enquanto local que detém material de importância histórica para a sociedade. Os documentos digitais são armazenados em uma nuvem. Então, as chances de você esbarrar em um edifício que tem a função de lugar de memória para a sociedade, isso pode levar ao fim deste papel e o povo deixar de levantar questões sobre”, diz.

“Quando vemos que em países como a Holanda, o arquivo nacional de Amsterdã é, inclusive, um espaço de cinema documental, você percebe a combinação entre documento arquivístico e entretenimento social. Isso faz muita diferença”, disse, em crítica ao brasileiro que “tem uma visão estreita do que seja um lugar de memória. Essa lei dialoga com uma tendência política de desmaterializar os lugares de memória política e social. As instituições são espaços de desmonte, então temos que ter cuidado com essa lei”, completa.

A especialista em documentação Raquel Bueno conclui, mediante os temas discutidos, com a exclamação: “Bem-vindos à República das bananas!”. Ela critica o fato do “brasileiro não ter consciência do que é documento ou mesmo história (…) Temos alguns erros históricos sobre o tema. Mesmo o diplomata Rui Barbosa (1849-1923) mandou incinerar toda a documentação sobre a escravatura. O motivo: ele era ministro da Fazenda, e escravo era patrimônio. Não foi por vergonha, foi porque ele não queria pagar indenização da desapropriação de bens após a abolição”.

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